Saturday, June 06, 2009

João Bénard da Costa



O Senhor Cinema, recentemente falecido, teve nas Edições Afrodite uma breve participação. Para a Arte de Furtar escreveu este breve comentário:

Conhecem, com certeza, a anedota. Um conferencista (supõe-se que erudito) comentava determinado passo da obra de Lautréamont. E explicava: «Com este verso quis Lautréamont dizer... ». Do público, levanta-se «papá» Breton, furioso: «Não senhor, não quis. Se quisesse dizer, tinha dito.»

Não há crítico, comentador, prefaciador, posfaciador, eteceterador, que não repita a figura do tal fulano. É mesmo o que se espera dele. E muito mais se a obra é clássica e pertence ao chamado património cultural que, regra geral, não é nem pertence ao chamado património cultural, que regra geral, não é nem uma coisa nem outra, mas apenas um título de livro que não se leu. Nesses casos, o que se espera é que uma leitura moderna venha sobrepor-se a uma escrita antiga e aqui se chegue para dizer o que o autor quis na sua, ou seja na nossa.

Regra geral, também essa leitura moderna é moralista e é política, já que de moralistas e políticos todos queremos ter um pouco. E, continuando nas regras, sem tampaxes que nos valham, são-no também a de que normalmente se invertem as perspectivas. Assim, dum livro conformista, muito serenamente metido dentro dessa mathesis universalis que sossegava o sono dos nossos seiscentistas, fizemos obra de crítica «realista e percuciente» à sociedade do tempo, com uma pitada de progressismo e muito recheada de intenções ocultas.

Como eu não sou o enigmático autor da Arte de Furtar também não vou dizer, como ele achava que podia, o que se passa na verdade. Limito-me a lembrar, servindo-me para tanto da inversão do sentido de uma sua frase, que todos somos para com os outros como os olhos que, vendo-se a si mesmos, nunca vêem tudo.

E tudo, neste caso e para mim, é esse delicioso gongorismo, a que também se chama culismo, a que também se chama conceptismo (todos aprendemos isso) e de que é tão bom gostar-se. É esse gozo de escrever por escrever como quem solitariamente se pratica. É esse andar para trás e para a frente (às voltas) com as ordens das ideias, isto é, com as ordens das coisas, em jogos de argumentação que como jogos se conhecem mas que até eram bem pagos (vale a pena ler com muita atenção o capítulo XVI «Em que se mostram as unhas reais de Castela e como nunca as houve em Portugal»). É a lição de moral com tanta pachorra dada e sem qualquer ilusão furtada. È finalmente, palavras, escrita, razões, desarrazoar, moral, a cobrirem tão completamente o autor que, além de não sabermos quem é ele ao certo, também nunca podíamos saber, de tão disfarçado, que unhas tinha ele ao certo.

Fica-nos apenas, em seu abono, tudo o que atrás se disse e mais o ter ele dito, também, que «as unhas disfarçadas muito cheiram a maliciosas». E da malícia disse o autor da Arte de Furtar o que da sua obra, como de qualquer tratado moralista do seu, do nosso ou outro tempo, se deverá sempre dizer: «só representa o que lhe arma para seu interesse, paliando tudo com razões afectadas e sofísticas, até dar caça ao que em favor da parte que lhe toca ou que o peita».

Ou seja e voltando ao princípio, o que todos faremos nestes escritos sobrescritos, quod erat demonstrandum.