Thursday, January 10, 2008

David Mourão-Ferreira contra Sade


O prefácio que David Mourão-Ferreira(na foto) escreveu para a edição da Filosofia na Alcova:

Contra Sade

Não me atrevo decerto a contestar que Sade seja um grande escritor. E, mais ainda que um grande escritor, uma personalidade-padrão, uma figura emblemática, uma espécie de farol. Acho mesmo que devia ser declarado – como os faróis – objecto de utilidade pública. Ele tem, com efeito, o alto mérito de assinalar, à navegação nocturna dos nossos instintos, a existência dos piores baixios ou de correntes perigosíssimas. E, todavia, o seu espectáculo desagrada-me.
Em 1930, Mário Praz observa que «faltam a Sade», como escritor, «as qualidades mais elementares». No mesmo ano, Jean Paulhan profecia estoutro juízo: «um escritor que é preciso colocar sem dúvida entre os maiores». Embora contraditórias na aparência, estas duas opiniões podem perfeitamente conciliar-se - e ambas serão, e meu ver, igualmente defensáveis. Se entender-mos por «qualidades elementares de um escritor» a originalidade da expressão linguistica ao nível do estilo, a variedade e a riqueza da imaginação, a capacidade e agenciar e estruturar as partes num todo harmónico – é inegável, no que tange a Sade, que Mário Praz tem inteira razão. O estilo do «Divino Marquês» apresenta-se, em geral, de uma chateza confrangedora, estereotipado e uniforme, tecido de constantes «clichés», sem o risco pessoal daqueles pormenores concretos e daquelas transposições metafóricas que dão relevo e surpresa à linguagem. Po outro lado, o seu «mundo» romanesco revela-se bastante circunscrito, aflitivamente esquemático, regido por leis quase mecânicas. Quanto à estrutura, não há obra sua que não peque pelo desequilíbrio das diversas partes que a compõem, ora com longas digressões abstractas a comprometerem os elementos da ficção, ora com o amontoado de cenas ou situações excessivamente semelhantes ou paralelas. Mas a verdade é que um escritor se define apenas por estas (ou outras) «qualidades elementares». O estilo de um Stendhal, só por si, não convidaria ninguém a penetrar na fruição da sua obra; e Tostoi, segundo parece, estava muito longe de escrever convenientemente. Por sua vez, o «mundo» romanesco das novelas de cavalaria ou o da Condessa de Ségur, ou o da qualquer outra forma narrativa de edificação moral, não se mostra nem mais diversificado nem mais rico de matizes que o do Marquês de Sade; e, se tal acontece com obras empenhadas na cruzada do Bem, porque há-de exigir-se mais de uma que tão-só pretende erguer o pendão do Mal? Dos defeitos de composição e de estrutura bastará dizer não são eles, com certeza, que nos impedem hoje de ler o nosso Camilo. Um escritor pode ser um grande escritor, a despeito da ausência dessas (ou outras) «qualidades elementares». Pode sê-lo mesmo a despeito da ausência de todas elas, desde o momento que tenha sabido, trazer à superfície os minérios que ele escondia e expô-los de tal modo que a humanidade reconheça neles – com júbilo, com espanto ou com horror – a própria ganga de que também é feita. Este, o caso de Sade.
Mas a sua fortuna, durante muito tempo, foi apenas subterrânea. Sistematicamente relegado para as turvas galerias da patologia sexual, convertido em etiqueta de sumários diagnósticos, consultando as mais das vezes a título de documento ou transmitido, de mão em mão, sous le manteau, como pornográfica mercadoria, o Marquês de Sade só neste século passou a ter ingresso nos manuais de história literária, nos dicionários de literatura, nas mais austeras colecções de ensaios. «Este homem», dizia Apollinaire, em 1909, «que pareceu nada significar durante todo o século dezanove, bem poderá dominar o século vinte...» Hoje ninguém ignora como saiu certa a profecia. Cerca de 1950, Bertrang d´Astorg sublinhava que «a sua importância deriva do facto de o nosso tempo se mostrar particularmente atento a todas as manifestações da sexualidade que desembocam na criminalidade»; e acrescentava: «Deriva do facto de o universo sádico ser também um universo do absurdo (...) e um universo totalitário, (...) concentracionário. Este universo é o dos trabalhos forçados do prazer». Mais adiante, o mesmo ensaísta observava ainda que «O Marquês de Sade pressentiu a imediata proximidade de universo concentracionário puro, isto é aquele em que o trabalho físico teria por finalidade aniquilar a vítima», concluindo então que «por estes aspectos e alguns outros, Sade é um autor essencialmente contemporâneo, que apenas podia se compreendido pela nossa geração». Quem sofreu a experiência de Dachau e de Auschwitz, quem sofre ainda hoje – a Oeste ou a Leste da Cortina de Ferro – a experiência de outros campos mais discretos ou por enquanto menos famigerados, quem pelo menos conheça o relato desses horrores ou simplesmente vive no tempo em que eles decorrem – encontra-se, com efeito, em situação tristemente privilegiada para melhor compreender o universo de Sade. Mas não só esses: também aqueles que mais ou menos têm contactado com certas formas «modernas» de «prazer» colectivo. Recordo, por exemplo, como já há perto de três anos evoquei, «o suspeito esplendor da vida nocturna de Berlim Ocidental, o rio de luzes e de tentações da Kurfürstandamm, o frenesim de quem procura atordoar-se, como se não houvesse dia seguinte» - e vejo, nesse e em outros espectáculos que se lhe assemelham, adequados cenários para os frenéticos heróis de Sade. Nosso contemporâneo? Mais que isso. Como reza o título de um ensaio de Pierre Klossowski: Sade meu próximo.
Contudo, a compreensão do nosso próximo não há-de necessariamente implicar amor; e muito menos canonização. No entanto, em nossos dias, a respeito de sade, é isso mesmo que mais e mais se verifica. Por meu lado, se tivesse de sugerir a alguém uma espécie de método para ler as suas obras, creio que diria mais ou menos isto: «Pára. Repara. Olha bem. Vê no que podes transformar-te. Vê a que abismos te pode conduzir o erotismo sem amor. Vê como é estéril o mundo-dos-sentidos-sem-mais-nada. Como é grotesco e desumano. Não é decerto aí que hás-de encontrar a salvação».
Mas, a breve trecho, havia de sentir-me envergonhado por declamar semelhantes palavras. Sade, em mim, tem o condão – deveras vexatório – de me provocar muito bons sentimentos. É também isso que não lhe perdoo. É mais um motivo por que estou contra ele.