Thursday, December 13, 2007

Entrevista a Alice Gomes

Alice Gomes entrevistada para o Jornal de Letras e Artes de 8 de Junho de 1966.

«Entre as crianças que tenho podido observar, o sucesso da «Poesia da Infância» tem sido fulgurante» Alice Gomes


São tão poucos os livros de poesia editados a pensar nas crianças, que não podemos ficar indiferentes aparecimento de «Poesia da Infância», uma colectânea que Alice Gomes resolveu, em boa hora, dar à estampa.
A escritora já há dez anos havia publicado «Poesia para a Infância», mas agora são as próprias crianças que, pela sua mão vêm aos escaparates das livrarias, numa sinceridade e numa pureza despidas de toda e qualquer roupagem literária.
Foi este o motivo que no levou a formular algumas perguntas à escritora Alice Gomes.


Poesia de adultos para crianças ou poesia de crianças para crianças?
A poesia é um bálsamo para toda a gente (não repare no arcaísmo). Se nos lembrarmos do encanto que tem sido para crianças e adolescentes a colectânea que fiz há anos, «Poesia para a Infância» - poesia que precisamente quis que fosse autêntica, de verdadeiros grandes poetas e nem sequer aceitei que um dos nossos maiores me fizesse versos de propósito, com medo de que a puerilidade, que ele achava necessária, traísse a verdadeira poesia ... – a primeira parte da primeira resposta está aí. Quanto à poesia de crianças... para crianças, confesso que tive receio de não acertar. Quando algumas pessoas liam os versos «Poesia da Infância», antes dela sair, aventavam que aquilo era para adultos. Oh! mas a gente não percebe nada de crianças! O sucesso da «Poesia da Infância» entre as crianças que tenho podido observar, tem sido fulminante. As caritas delas ao ouvir ler ou a ler, têm sido para mim outras tantas sensações de poesia. Um amiguinho meu já comprou dois livros porque no primeiro... caiu um borrão.
Estará na mão de quem educa despertar o amor pela poesia?
Sem dúvida que está. Já pensou no que é educar? Ou quer referir-se só aos professores? A estes, sim, é que compete a tarefa mais completa. E como digo na minha apresentação da «Poesia da Infância» o clima que nós, os professores, facultamos à criança a fará viver em poesia.
E são cinco ou seis horas do seu dia acordado que as crianças vivem nas escola ou para a escola. Mas a família tem de completar a tarefa. E completa. Demos-lhe com quê, ajudêmo-la. A mãe de um dos meus mais fecundos poetas tinha rasgado os poemas que não prestavam. Mas eu guardara a cópia... Ao vê-los publicados, compreendeu e veio... pedir licença para me beijar.
Deverão os educadores sugerir a feitura de poemas livres, propor temas, ou aguardar que a poesia surja espontânea?
O poema é sempre livre. Mesmo quando rima. Olhe, eu quando tinha doze, catorze anos saía-me tudo em soneto. Mas na «Poesia para a Infância», o poema mais branco que lá está foi escrito por uma poetisa, ao tempo, de treze anos.
Quanto ao resto da sua pergunta posso-lhe dizer que no nosso livro há de tudo. Esse caderno que guardo há vinte anos, foi todo espontâneo. Mas nós tínhamos um jornal manuscrito... Todavia, aquele mesmo inspirava-se em tudo: temas de história – imitação de Afonso Lopes Vieira – paisagens que o impressionavam, as cheias do rio e a sua tragédia, o burro com o seu carrego e até um botão. Oh! o poema do botão que, não sei porquê (esta coisa de eu andar sempre às pressas), falhou nesta minha colectânea e que já tive vontade de chorar por causa disso. Olhe, aqui está ele.
Uma das colaboradoras deste livro, por sinal do ensino oficial, propunha temas para todas as alunas das últimas classes primárias. Os melhores (para mim, mea culpa) foram os publicados. Uma outra colheu dezenas de poesias feitas todos os anos no dia em que começava a Primavera. Mas a atitude que agrada mais (não falemos em dever) é a de esperar que a poesia surja espontânea. Surge muitas vezes sem estímulo aparente, mas os estímulos são de toda a espécie. As leituras, as audições, a emulação de um camarada. Emulação não digo bem, talvez a lembrança... Este livro está a ter esse efeito e de que maneira, entre as crianças que conheço.
Deve continuar a insistir-se na declamação, quer individual quer colectiva, de poemas previamente decorados, ou acha que se trata de um método negativo?
Não, o método não é negativo. O que pode ser nefasto é o mau gosto do quem escolher os recitativos. No ensino francês, Récitation constitui uma matéria tão importante como a Gramática.
Recitar é educativo, principalmente para a articulação, a colocação da voz, a memorização, a própria leitura porque, para decorar, tem de se ler muitas vezes e com um fim. Domina ainda a timidez que tolhe normalmente a criança em presença dos adultos, dá uma presença de espírito que lhe servirá pela vida fora, e – supremo bem – leva-a a conhecer os poetas.
Para o sentimento da poesia, propriamente, é válido porque será, se o for, mais um contacto com ela.
Poderá a ilustração de poemas, um estreito e permanente contacto entre o desenho e o ensino da língua, abrir simultaneamente a criança às cores e aos ritmos?
Essa pergunta já implica a resposta e só prova que o senhor está dans la chose, como me disse um cultor da arte infantil, uma vez, na Unesco.
Os meios de abrir simultaneamente a criança às cores e aos ritmos, como tão bem diz, estão ao alcance do professor e tenho só a dizer-lhe que isso está hoje no espírito dos orientadores, honra lhes seja.
Como reage a criança à poesia sem métrica e sem rima?
A criança gosta da rima, acha graça aquelas palavras que parecem o eco umas das outras. Mas a poesia autêntica, com o seu ritmo próprio, se for bela, se for bem lida, se for poesia, é ouvida pelas crianças com o mesmo encanto com que ouvem as metrificadas de sete e dez silabas tónicas a que os nossos ouvidos e os nosso dedos se habituaram.
A entrevista terminara. Mas Alice Gomes tinha mais uma história para nos contar. O seu amor pelas crianças podia mais que a rápida marcha dos ponteiros do relógio. Escurecia. Não só a voz, as mãos também, os olhos, o coração, falavam de ternura, graça, ingenuidade, pureza. Falavam de crianças. Falavam de poesia.

José Correia Tavares