Friday, June 08, 2007

As Avelãs do Cesariny

(As Avelãs do Cesariny – Fernando Ribeiro de Mello, 1968. Raro folheto de quatro páginas com texto sobre polémica entre Fernando Ribeiro de Mello e Mário Cesariny de Vasconcelos)

De Mário Cesariny de Vasconcelos, grande poeta surrealista-funcionário-Censor(1) do Jornal de Letras e Artes, ex-delegado-delegou-se do Breton para o Café Gelo, antologiador-surrealista-à-portuguesa, detentor de múltiplos pseudónimos-iniciais secretos e assanhados contra não simpatizantes, pintador-surrealista, pensador-pictural-Vieira da Silva, bolseiro em Paris, veraneante do Solar de Pascoais em Amarante, do de Ricarte-Dácio em Londres, dos direitos de autor dos antologiados quando como e onde lhe apraz, veio à luz um papelucho canto de cisne só e abandonado(2) pacientemente bordado de rameirices ronha raiva e ranho e muito menopáusico no qual se esquiva de Luiz Pacheco, morde os signatários de um já esquecido texto em defesa de Sade, diz que tem coragem e, num generoso gesto de modéstia (?), em lugar de «tomates» «umas avelãnzitas»(3). Mais diz que não quer ser Papa, nem sequer Pároco, que é igual em tudo ao A. de Campos (!), que os colegas surrealistas que o abandonaram são «meninos-pequeninos», que os textos não da sua lavra são uma merda, que qualquer professor conclui que os autores merda são, que no Jornal de Noticias, dito jornal de gralhas, não há direito de lhe porem o retrato em baixo (sem dignidade nenhuma) e dos outros em cima, que todos lhe têm tanto respeitinho que mesmo insultado-os eles ficam quietinhos(4), que aqueles que o lançaram literáriamente e a quem dedica madrigais sempre foram com seu documentado conhecimento uns denunciantes, que constata a miséria física e moral em que os outros se extinguem, que João Gaspar Simões lhe dá sempre razão, que está com ele, que Eduardo Prado Coelho também, que tudo se prova com um Sr. Luís Pignatelli, e que por tudo isto: é «nobre», é «cidadão», é «tribunal de consciência», é «luz da razão», é «a razão humana», tá fora da «restolhada».
Mas nada disso nos diz respeito, embora nos divirta. Já o mesmo não acontece com certa passagem do texto(5) da qual daremos um rápido esclarecimento aos leitores incautos do inquisitorial papelucho do poeta.
Assim, saibam quantos o leram que:
1.º - O nosso descatedrado delegado do Breton, Mário Cesariny, sabendo que eu contratara Herberto Helder para traduzir «La Philosophie dans le Boudoir» de Sade, corajosamente me propôs traduzir também a Correspondência do Marquês que ele mesmo prefaciaria para eu editar. Aceitei.
Mas logo entrou às arreCUas, acabando por desvinCUlar-se desse compromisso quando verificou estarem as autoridades judiciais a proceder ao levantamento de um processo-crime à Antologia de Poesia Erótica e Satírica Portuguesa, por mim igualmente editada(6).
2.º - O tão exigente e intransigente poeta, não obstante ter já vindo a público e conhecer a «edição idiota de «La Philosophie dans Le Bodoir», filha maneta de um comerciante excitado» – Oh! comercial lapso! Oh! comercial necessidade – tomou a simpática iniciativa de prometer ao responsável pela «autêntica associação de malfeitores»(7) dar-lhe proximamente para editar a sua preciosa versão das «Iluminações» de Rimbaud (?!)(8), filha dos seus maiores desvelos de tradutor e ao longo de muitos anos heroicamente defendida das mãos impuras dos comerciantes editores.
3.º - Que eu seja comerciante, para ninguém será motivo de espanto já que sou editor.
a) Que eu tenha sido comerciante com a edição do Sade, quando é do público conhecimento ter sido mais de metade da tiragem apreendida pela polícia, sendo obrigado a pagar pesada multa para remir a pena a que o Tribunal Plenário da Boa-Hora me condenou, é coisa só talvez possível ao inocente cérebro de M. C. que (ao que parece) dispõe de secretos e exclusivos processos CUmerciais.
b) Que M. C. me pretenda censurar, talvez ofender, a mim editor, por ser comerciante, ele escritor, é coisa que não esperava. A única censura que até à data me dirigiu foi numa Recensão Crítica(9) em que manifestava o seu desagrado pela qualidade literária de uma Antologia por mim publicada, no que está no seu pleno direito, longe de mim contestá-lo, até por significativo, como também não contestei o desagrado pela mesma obra manifestado pelo Sr. Rodrigo Emílio no «Diário da Manhã»(10), com quem o nosso «destomatado» Cesariny amigavelmente emparceira. Mas em qualquer dos presbitérios os desagrados (desagravos?...) nada clamavam de ordem comercial...
C) Inclusivamente, o juízo crítico emitido por este empreiteiro da moral literária e intelectual no início das citadas recensões era, ao contrário daquela com que logo me metralhava, muito precauto e desvelado. Nele bradava o seu agrado, mesmo apologia da sexagenária arte poética do autor de um “Manual do Libertino”, de nome António Pinheiro Guimarães, ao que se diz generoso mecenas dos quadros chulorealistas que o inCUrrupto Cesariny vai vender ao Porto.
Ora, tranquilamente, tudo me leva a crer que essa do «comerciante excitado», a não ser lapso, é o próprio espelho do tão íntegro M. C. de Vasconcelos.
4.º - De «um prefaciador em apuros» e de «um ilustrador a milhas de distância» é discutível e acima de tudo insólito, particularmente se considerarmos os actuais apuros de dignidade solitária das «avelãzitas» de Vasconcelos e a distância entre o que lhe convém a ele CUrial juiz e o que importava do Sade.
5.º - De «um tradutor merdoso que despacha para o preto que eu não sei quem é» é brincadeira, pela certa. Para além do muito que se poderia alegar, o tradutor foi a tribunal sem pedir os «tomates» emprestados ao Mário Cesariny das “avelãzitas”, coisa que se a este inquisidor já seucudeu, não foi certamente por causa e com «aqueles»... Por outro lado é brincadeira, para Cesariny, essa coisa de «pretos», dada a escravatura(11) deles que muitos sabem tem utilizado. E nós até sabemos quem são, ou foram. Aí vai um para lhe refrescar a imaCUlada memória: José Manuel Simões, na tradução de «O Vento», de Claude Simon.
E é tudo no que pessoalmente me importava desbaratizar o papelucho deste inesperado e só agora desoculto justiceiro.
Quanto ao «Tribunal de consciência onde editores, tradutores e prefaciadores deste género terão um dia de comparecer» este nosso insólito guardião dos bons costumes (que não quer ser Papa – diz que no Vaticano já houve um – nem sequer Pároco) de recente cátedra no Jornal de Letras e Artes (onde nos ensina Ortografia por causa do Jornais do Porto) pondo o dedinho moralizador em riste, mais parece um padreca, coisa desde há alguns séculos nem no Vaticano possível dada a necessária «verificação» dos «tomates». Padreca. Isso mesmo! Em concordância até quando, por qualquer esquisitíssimo transvio psicológico, em lugar de Luís diz «Luisona» e ao pretender barafustões é traído e sai-lhe «barafustonas».
Muito bem, Sua padreca!

Lisboa, Julho de 1968
Fernando Ribeiro de Mello

1 - Veja-se a folha «Funções de Cesariny» de Virgílio Martinho
2 - Talvez não tanto como isso. Além do Rodrigo Emílio, critico literário do «Diário da Manhã», a Mocidade Portuguesa (Programa da E. N. «Rádio Universidade» em que lhe foram oferecidos poemas e do qual M. C. nos surge como Musa e Mentor de talentosos jovens poetas) parece também acompanhá-lo fraternalmente. Se se tornar necessário, poderemos acrescentar a lista dos seus acompanhantes.
3 - Talvez possamos dar uma achega para nem pevides.
4 - É mentira. Virgílio Martinho rasgou-lhe o dito papel na cara. Ele é que ficou quietinho.
5 - «a autêntica associação de malfeitores que promoveu a primeira e já agora única edição mundial idiota de «La Philosophie dans le Boudoir», de Sade, filha maneta de um comerciante excitado, de um prefaciador em apuros, de um tradutor merdoso que despacha para o preto que eu não sei quem é e de um ilustrador a milhas de distância».
6 - Cruzeiro Seixas, um dos solidários com as “avelãzitas” de M. C. na não assinatura do tão vitimado texto em defesa de Sade, simultaneamente e pelas mesmas razões deu às de vila diogo em relação ao compromisso de realizar as ilustrações para a minha edição da Philosophie, tendo eu que recorrer aos “tomates” do suicidado João Rodrigues.
7 - «...autêntica associação de malfeitores». Estranha maneira de um Surrealista, ainda que ex - , classificar quem incorreu em processo-crime levantado pelo Tribunal Plenário de Lisboa.
8 - Precisamente poucos dias após a saída do citado texto que M. C. não assinou. Presentes: Virgílio Martinho e Ricarte-Dácio.
9 - Jornal de Letras e Artes, última fornada. Essas Recensões são responsabilizadas (!) com as iniciais L. A. que Mário C. pessoalmente me informou serem suas.
10 - «Diário da Manhã», 9-5-68.
11 - Cruzeiro Seixas, seu fiel correligionário em não assinaturas, também conhece o cumércio. Mas nas artes gráficas. Tenho experiência pessoal. Pois é, «diz-me com quem andas..»

ERRATA

Onde se lê seucudeu, leia-se sucedeu...
Onde se lê Cruzeiro Seixas, leia-se: Cruzeiro Seixas.
Omitem-se as gralhas que não prejudicam a verdadeira compreensão do texto...